Nenhuma história diz tanto
sobre os últimos 2 000 anos deste planeta quanto a da Igreja. Pelos corredores
do Vaticano passaram reis, guerras, o melhor da arte e até alguns santos.
Era 11 de fevereiro de 1929 e
faltava meia hora para o meio-dia quando um Cadillac preto estacionou na frente
do Palácio de Latrão, em Roma. As portas do carro se abriram e o homem mais
temido da Itália saiu. Era Benito Mussolini, chefe do regime fascista que
governava o país. Dentro do palácio – o quartel-general da Cúria Romana, rosto
administrativo da Igreja Católica – o papa Pio 11 e seus funcionários mais
gabaritados receberam o ditador com apertos de mão. A conversa teve início e
Mussolini logo exibiu suas cartas: queria que a Igreja reconhecesse
oficialmente o regime – era uma tentativa de neutralizar o adversário Partido
Popular. A Igreja também foi clara ao falar de seus objetivos. Pediu o que
havia perdido, no século 19, durante o processo de unificação italiana: um
Estado soberano. Por volta da 1 da tarde, Mussolini assinou o Tratado de
Latrão, que conferia ao papa um território independente dentro de Roma. Em
troca, a Igreja reconhecia como legítimo o governo controlado pelo duce.
A rigor, foi nesse dia de
inverno, na soturna companhia de um dos mais violentos tiranos do século 20,
que nasceu o Estado do Vaticano como ele é hoje: o menor país independente do
mundo e a última monarquia absolutista da Europa. Mas o encontro em Latrão foi
resultado de uma história muito mais longa, que se enraíza 2 000 anos no
passado – desde um tempo em que o papa era apenas o bispo de Roma, uma entre
muitas lideranças de uma seita perseguida. Em seu auge, pontífices se
declaravam os “senhores do mundo” e desencadeavam guerras com um sinal-da-cruz.
Hoje, o papado é a mais longeva organização internacional da história. De onde
veio, e onde foi parar, tanto poder? Para desvendar essa história é preciso
retornar às origens do cristianismo, quando Roma virou centro de uma seita
judaica nascida nas areias do Oriente Médio.
A primeira Igreja
Basílica de São Pedro - Vaticano - Roma - Itália |
Certo dia, Jesus passeava pela Judéia, uma das províncias mais pobres do Império Romano – que se estendia da atual Inglaterra ao Iraque. De repente, o Messias olhou para um de seus apóstolos, o pescador Simão, também conhecido como Pedro. E disse: “Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei minha Igreja. Eu te darei as chaves do reino do céu, e o que ligares na Terra será ligado nos céus”. Para o dogma católico, essa passagem do Evangelho de São Mateus significa que Pedro foi escolhido como representante de Cristo na Terra. O primeiro papa.
No início, o cristianismo era
uma seita de judeus para judeus. Tanto é verdade que, após a crucificação de
Cristo, os apóstolos se mantiveram pregando em Jerusalém. A ideia de que Jesus
era o tão aguardado Messias, porém, não pegou entre os judeus. Pelo contrário:
os apóstolos foram tão hostilizados que se viram obrigados a se espalhar pelo
Oriente Médio e pregar para novos ouvidos. Foi assim que o Messias passou a ser
descrito como redentor de todos os homens e de todas as raças. O discurso
colou. Comunidades chamadas igrejas – do latim ecclesia, assembleia – pipocaram
em cidades da Ásia, África e Europa. E logo chegaram ao centro político de
então – a tradição católica assegura que Pedro viajou a Roma por volta do ano
42. A vida na capital não era fácil: os cristãos eram perseguidos por se
recusar a adorar deuses romanos. O próprio Pedro foi preso e levado ao Circo de
Nero, uma arena usada para corridas de carruagens e execuções de traidores
construída num terreno pantanoso nos subúrbios de Roma. A região era conhecida
como Vaticanus, provável derivação de Vaticus, antiga aldeia etrusca que
existia lá. Nesse lugar misterioso e algo sinistro, Pedro foi crucificado e
enterrado. Mas, precavido que era, ele já havia escolhido um sucessor, Lino,
romano convertido ao cristianismo sobre o qual quase nada se sabe além do nome.
E assim a autoridade de Pedro foi transmitida, como continuaria sendo de
geração em geração e de bispo em bispo, até chegar a Bento 16, o 2670 herdeiro
de são Pedro – ou 2650, como prefere a Igreja, que riscou de sua lista Estêvão,
que morreu apenas 3 dias após ser eleito, e Cristóvão, que tomou o poder à
força.
Está aí, em resumo, a tese do
“primado de Roma”, segundo a qual os bispos romanos são os representantes
legítimos de Jesus. Mas os fatos que sustentam esse dogma nunca foram
unanimidade. Não há provas da passagem de Pedro por Roma. A Bíblia nada diz a
respeito – lendas sobre sua viagem e martírio foram coletadas por volta de 312
d.C., na obra de um propagandista da Igreja, Eusébio de Cesaréia. Comprovar
essa tradição sempre foi questão de honra para os papas. Na década de 1930, por
exemplo, escavações financiadas pelo Vaticano encontraram um antigo túmulo sob
o altar da Basílica de São Pedro – que, de acordo com a tradição, foi erguida
sobre a sepultura do apóstolo. Junto aos ossos, os arqueólogos acharam símbolos
cristãos, como peixes e cruzes. A descoberta não convenceu todos os
especialistas. “Havia cemitérios no Vaticano muito antes de Cristo. O túmulo na
basílica talvez nem seja cristão – os romanos pagãos costumavam usar símbolos
de todas as religiões”, diz o historiador André Chevitarese, da UFRJ, um dos
maiores especialistas brasileiros no assunto.
Como a maioria de seus
companheiros, Chevitarese também duvida que Pedro fosse um líder absoluto. “O
cristianismo antigo não tinha hierarquia rígida. Havia bispos independentes,
com opiniões diversas sobre doutrina e fé. ” Essa fase “democrática” chegou ao
fim em 312, quando o imperador Constantino se converteu – e a religião
perseguida passou a ser a favorita do Estado. Foi a partir daí que a Igreja se
tornou hierárquica. Doações feitas pelos imperadores a enriqueceram – a
instituição do celibato foi feita nessa época, para impedir que a fortuna
evaporasse entre herdeiros. A proximidade do poder logo subiu à cabeça do bispo
romano – que, até então, não era mais nem menos respeitado que líderes de
outras comunidades. No final do século 4, os bispos de Roma adotaram o título
de papa, “pai”, em grego, sinal de que se consideravam chefes dos outros. Uma
espécie de réplica espiritual do imperador.
Trapaça na Idade Média
O Palácio e a Basílica de São João de Latrão |
Na penumbra da sala, um homem escreve sua obra-prima. Ele usa uma pena, tinta preta e folhas de papiro ou pergaminho. Não há certeza quanto à data, algo em torno do ano 750. Um endereço provável é o Palácio de Latrão. O autor seria um certo Cristóforus, secretário do Papa Estêvão 20. Certeza mesmo, só em relação à obra: é a Doação de Constantino, a fraude mais bem-sucedida da história.
Para entender o sentido do
documento, temos de voltar no tempo. Ao longo do século 5, a parte ocidental do
Império Romano foi invadida e devastada por tribos bárbaras. Em 476, Roma foi
conquistada. Na confusão da guerra, o papado foi a única instituição organizada
que sobreviveu – o papa Leão Magno entrou para o rol dos gênios da diplomacia
por ter liderado o Vaticano nessa transição. Quando o rebuliço acabou, a Igreja
era dona do mais poderoso dos monopólios: o conhecimento. Religiosos cristãos
eram os únicos europeus letrados no início da Idade Média. Fornecendo
conselheiros e legisladores para os reinos nascentes, a Igreja ganhou
influência sobre os soberanos bárbaros, que começaram a se converter em 508 – o
primeiro foi Clóvis, rei dos francos, que mandou batizar seus exércitos com
tonéis de água benta.
O autor da Doação de
Constantino provavelmente pertencia a uma classe especial de clérigos eruditos:
as equipes de falsários que, entre os séculos 6 e 9, trabalhavam nos
escritórios papais alterando e inventando documentos para fortalecer a posição
dos bispos romanos. A Doação era uma mistura de testemunho e testamento,
supostamente assinado pelo imperador Constantino em 315. O texto conta como o
imperador foi milagrosamente curado da lepra graças às preces do papa
Silvestre. Em troca, transformou os papas em seus herdeiros legais: “A eles
deixo a coroa imperial e o governo de todas as regiões do Ocidente, de agora
para sempre”.
Ao longo da Idade Média, a
Doação foi aceita como documento verídico e invocada por nada menos que 10
papas para reivindicar poderes políticos. Muitos historiadores acreditam que a
fraude foi usada pela primeira vez em 754. Nesse ano, Estêvão 20 viajou para
encontrar Pepino, rei dos francos. Estêvão procurava ajuda para transformar
Roma e as terras vizinhas em território da Igreja – nos dois séculos
anteriores, a capital da cristandade havia sido saqueada e dominada por
hérulos, godos, bizantinos e lombardos. Pepino, que havia tomado o trono à
força, tentava legitimar seu poder. “A Doação foi apresentada pessoalmente por
Estêvão a Pepino. O rei franco aceitou o documento como prova da autoridade dos
papas – na sociedade iletrada da época, registros escritos despertavam
respeito”, escreve o historiador americano Norman Cantor em The Civilization of
the Middle Ages (“A Civilização da Idade Média”, sem tradução em português).
Pode parecer estranho, mas os invasores tinham uma admiração supersticiosa por
seu antigo inimigo, o Império Romano. Os reis bárbaros sonhavam em igualar os
antigos imperadores – e Constantino era um dos mais famosos. Depois de ter a
coroa consagrada por Estêvão, Pepino partiu para a Itália. Expulsou os
lombardos, que dominavam o país na época, e converteu um pedaço da Itália
central em território independente, da Igreja. O coração do novo reino era a
cidade de Roma e a área vizinha, que hoje forma o Vaticano. Todos os habitantes
dessas regiões viraram súditos dos papas, passaram a lhes pagar impostos, a ser
julgados e governados por eles. Assim nasceu o Estado Pontifício, que durou até
1870 (veja quadro à pág. 64).
Donos do mundo
Inocêncio III – o papa mais poderoso da história |
Na virada do ano 1000, a Europa estava de joelhos. Pela espada dos reis católicos e pelas viagens de missionários, o cristianismo tinha unificado o caleidoscópio cultural do Ocidente numa grande nação espiritual. Na Ásia, porém, a autoridade do papa não era reconhecida. O patriarca de Constantinopla, atual Istambul, considerava-se tão importante quanto seu colega italiano. E ainda havia discordâncias em certos aspectos da liturgia romana, como o celibato e a missa em latim. A rixa explodiu em 1054, quando o Papa Leão 90 e o patriarca Cerulário excomungaram um ao outro e romperam relações. Os orientais formaram a Igreja Ortodoxa, enquanto a Igreja Romana se declarou a única, eterna e católica – do grego katholikos, “universal”.
O adversário seguinte dos
papas surgiria na forma de um ex-aliado. Na época, a segurança do Estado
Pontifício era mantida por tropas do Sacro Império Romano – fundado por Carlos
Magno, filho de Pepino. Em troca da proteção, os imperadores exerciam uma
pesada influência sobre a Igreja. Na prática, o líder da cristandade era um
pau-mandado. Em 1073, surgiu um papa disposto a virar o jogo. Baixinho e de voz
aguda, Gregório 70 tinha um temperamento tinhoso, que lhe rendeu o apelido de
Santo Satanás. Em um decreto famoso, determinou que os pontífices não só tinham
o direito de legitimar soberanos como também podiam depô-los. E declarou que o
papa não era só o líder da Igreja, mas o “senhor do mundo”. Isso enfureceu
Henrique IV, soberano do Sacro Império Romano. Sem pestanejar, Gregório o
excomungou. “A excomunhão era uma ferramenta poderosa. O excomungado ficava
proibido de ir à missa e receber sacramentos – num tempo em que a religião
estava entranhada na vida cotidiana, essa punição era terrivelmente pesada”,
diz a historiadora Andréia Frazão, especialista em Igreja medieval. No inverno
de 1077, Henrique foi pedir perdão às portas do castelo de Canossa, na Itália,
onde o papa se hospedava. O Santo Satanás o obrigou a esperar 3 dias na rua,
debaixo de neve, antes de absolvê-lo.
Com o implacável Gregório, o
papado passou da defensiva para o ataque. Se antes precisava de proteção, agora
se impunha com ameaças de excomunhão. Hoje, os papas se declaram apenas
pastores espirituais. Naquela época, eram soberanos políticos com sonhos de
hegemonia, dispostos a conquistar o mundo pela cruz e pela espada. A maior
prova de poder e ambição veio em 1095, quando Urbano 20 ordenou que os reis
cristãos marchassem contra o Oriente Médio para “libertar” Jerusalém, governada
por muçulmanos desde o século 7. Cerca de 25 000 peregrinos e guerreiros
cristãos começaram a escrever uma das páginas mais brutais da história: as
Cruzadas. Durante a tomada de Jerusalém, em 1099, quase todos os judeus e
muçulmanos da cidade foram massacrados. Nos 200 anos seguintes, mais 8 cruzadas
marchariam sobre a Terra Santa.
Um século depois de Gregório,
em 1198, subiu ao trono Inocêncio III – o papa mais poderoso da história. Agora
o papado era uma potência militar, capaz de contratar os próprios exércitos, e
também uma instituição milionária. Camponeses e artesãos europeus eram
obrigados a rechear os cofres da Igreja com um décimo de suas rendas anuais, o
“dízimo eclesiástico”. A opulência papal era tanta que começou a atrair ódio.
Na época de Inocêncio, ganhou força no sul da França uma seita conhecida como
catarismo que negava a autoridade do papa e o chamava de filho do demônio.
Inocêncio respondeu com fúria ao desafio. Em 1209, convocou uma guerra santa
contra a “seita maldita”: aldeias foram queimadas, multidões chacinadas. Para
aniquilar o que sobrou do catarismo, Gregório 90, sucessor de Inocêncio, criou
em 1233 a Santa Inquisição, tribunal de clérigos com o poder de acusar, julgar
e condenar inimigos da Igreja. Com o tempo, o Santo Ofício se espalhou por
outros países e passou a perseguir e queimar não só cátaros, mas todos que
discordassem dos dogmas católicos – judeus, cientistas, gays. As sociedades
cristãs se tornaram perseguidoras e teocráticas. Por outro lado, a estabilidade
alcançada na marra alavancou o desenvolvimento que transformaria a Europa na
maior potência mundial. Cronistas descrevem o mais terrível e bem-sucedido dos
papas como um sujeito afável que gostava de contar piadas. Mas também fiel a
sua passagem favorita da Bíblia, em que Deus diz a Jeremias: “Eu vos alcei por
cima das nações e dos reinos para vencer e dominar, para destruir e
conquistar”.
Decadência com elegância
Rodrigo Borgia - Papa Alexandre VI |
A influência mundial
esmorecia, mas os papas ainda eram príncipes ricos e poderosos em seu
território. E, aos poucos, a boa vida afrouxou os costumes da Igreja. O
celibato passou a ser um detalhe esquecível e Roma mergulhou numa luxuriosa
dolce vita. A carreira eclesiástica virou ímã para oportunistas interessados
na fortuna da Igreja. Exemplo máximo foi Rodrigo Borgia (ou Alexandre VI),
eleito papa em 1492 graças à pesada propina distribuída aos eleitores – pesada
mesmo: eram 4 mulas carregadas de ouro. Bonitão e sedutor, Alexandre tinha duas
amantes oficiais, deu festas de arromba no Palácio Apostólico e gerou 7 filhos
conhecidos, alguns presenteados com rentáveis cargos eclesiásticos.
Apesar da má fama, os papas da
Renascença souberam usar sua riqueza para deixar um legado cultural exuberante.
Construíram bibliotecas, ergueram monumentos e transformaram a cidade em um
tesouro para os olhos. O maioral entre os papas da arte foi Júlio 20, que subiu
ao poder em 1503. Pai de 3 filhas, em vez de rezar missas de batina ele
preferia comandar exércitos, vestido em sua armadura de prata. Nos intervalos
entre batalhas, o papa guerreiro patrocinou alguns dos maiores gênios da época,
como os pintores Michelangelo e Rafael. Com a proteção e os salários pagos pelo
Vaticano, eles realizaram obras-primas como as incríveis pinturas no teto da
capela Sistina, de Michelangelo.
Foi justamente a admirável
extravagância de Júlio que detonou a pior crise na história da Igreja. Em 1505,
o papa começou a reconstrução da Basílica de São Pedro, no Vaticano, que estava
em ruínas. Para financiar as obras, autorizou todas as igrejas da Europa a
vender “indulgências” – documentos que davam absolvição total dos pecados em
troca de dinheiro. Isso enfureceu o monge alemão Martinho Lutero, que em 1517
publicou 95 teses denunciando a corrupção da Igreja. Começava a Reforma
Protestante. Pouco depois, cristãos da Alemanha, da Holanda e da Europa Central
já renegavam a autoridade do papa e a supremacia de Roma. O continente
mergulhou em dois séculos de guerras religiosas.
Medo da modernidade
Principais pensadores Iluministas |
Em 1870, um movimento
nacionalista unificou a colcha de retalhos que era a Itália e transformou as
terras papais em propriedades do novo Estado. No início do século 20, o
sucessor de Pedro estava pobre e reduzido a uma nulidade política. Os palácios
do Vaticano caíam aos pedaços, com esgotos entupidos e ratos. Foi nesse aperto
que Pio 11 assinou o controverso Tratado de Latrão, que incluía não apenas um
território soberano, mas também uma doação de cerca de US$ 90 milhões – o
suficiente para tirar as contas do vermelho. Foi uma bela virada. Hoje, o
Vaticano divulga lucros anuais de mais de US$ 200 milhões, incluindo doações de
dioceses e investimentos em empresas europeias.
O pacto com Mussolini foi
terrível para a imagem do Vaticano. No fim da vida, Pio 11 repensou suas
alianças e escreveu uma encíclica condenando o antissemitismo – na época,
Hitler já tinha dado a largada para o Holocausto. Diz a história que faltavam
dois dias para a publicação do texto quando ele morreu, em 1939. Numa decisão
desastrosa, o sucessor, Pio 12, arquivou a encíclica redentora: ele via no
regime nazista um incômodo necessário na luta contra a maior das ameaças, o
comunismo. “Mesmo após o início da 2a Guerra Mundial, Pio 12, um papa eloquente,
que fazia milhares de discursos sobre todos os assuntos possíveis, jamais
denunciou os crimes nazistas. Adolf Hitler, que se dizia católico, nunca foi
excomungado”, escreve o teólogo alemão Hans Kung em Igreja Católica.
Em 1958, a morte de Pio XII deu início a um dos conclaves mais agitados do século 20. Para impedir a eleição de um conservador, cardeais progressistas votaram em peso em Ângelo Roncalli (ou João XXIII), que quase com 80 anos parecia inofensivo. Nem bem subiu ao poder, o velhinho bonachão surpreendeu até os liberais ao convocar o Concílio Ecumênico Vaticano 20 – o objetivo, nas palavras do próprio João, era “atualizar” a Igreja. Concílios – ou seja, assembleias universais de bispos – ocorriam desde o início do cristianismo e eram um resquício de sua democracia primordial. Mas, desde a Idade Média, as decisões eram controladas ou censuradas pelo tacape do papa de plantão e seus funcionários mais próximos. A proposta radical de João 23 era afrouxar a hierarquia e dar mais poder de decisão aos bispos reunidos.
O concílio trouxe mudanças
antes impensáveis. Entre outras coisas, reconheceu o direito de cada indivíduo
escolher a própria religião – o que abriu canais de diálogo com outras crenças.
A liturgia foi reformada e as missas passaram a ser rezadas nas línguas locais,
e não em latim. Mas João morreu de câncer em 1963, deixando o concílio pela
metade. Seu sucessor, Paulo 60, permitiu-se dominar pela ala conservadora e
barrou a mais importante de todas as propostas: uma revisão do “primado de
Roma”, a tese que sustenta a autoridade suprema dos papas. “Houve tristeza e
indignação entre os bispos reunidos. Mas ninguém protestou em público”, escreve
Kung, um dos teólogos progressistas que participaram do concílio – e também um
indignado tardio, que só tornou pública sua revolta a partir de 1970, quando
passou a publicar livros criticando a doutrina absolutista do Vaticano.
A luta pela alma da Igreja
Católica continua. João Paulo II, que sempre foi um carismático e popular
conservador, não mexeu em doutrinas controversas, como a condenação dos
anticoncepcionais. As perspectivas para uma futura reforma do papado são
nebulosas. Por volta de 2001, Hans Kung e outros teólogos liberais fizeram
lobby por um Concílio Vaticano 30 – mas a ideia foi barrada pela Congregação
para a Doutrina da Fé, novo nome para um velho órgão: a Inquisição. Hoje,
claro, ela não queima ninguém, mas ainda tem o poder de travar mudanças nos
dogmas e censurar teólogos moderninhos, como fez com o brasileiro Leonardo
Boff, proibido de falar em público após criticar a postura centralizadora da
Igreja.
Na época em que o novo concílio foi recusado, o cabeça do Santo Ofício era um certo cardeal alemão, conhecido como intelectual brilhante. Amigo de Kung nos anos 60, ele simpatizava com a ala progressista. Mas mudou de ideia. Afastou-se do antigo companheiro e se tornou porta-estandarte da facção conservadora. Hoje, anda ao lado de cardeais como Giacomo Biffi, que durante o sermão da Quaresma deste ano 2016 na Santa Sé afirmou que a vinda do anticristo se aproxima – e que o enviado do Diabo estará disfarçado de “ecologista, pacifista ou ecumenista”. O nome desse cardeal alemão, você já deve ter adivinhado. É Joseph Ratzinger.
Joseph Ratzinger. |
Na época em que o novo concílio foi recusado, o cabeça do Santo Ofício era um certo cardeal alemão, conhecido como intelectual brilhante. Amigo de Kung nos anos 60, ele simpatizava com a ala progressista. Mas mudou de ideia. Afastou-se do antigo companheiro e se tornou porta-estandarte da facção conservadora. Hoje, anda ao lado de cardeais como Giacomo Biffi, que durante o sermão da Quaresma deste ano 2016 na Santa Sé afirmou que a vinda do anticristo se aproxima – e que o enviado do Diabo estará disfarçado de “ecologista, pacifista ou ecumenista”. O nome desse cardeal alemão, você já deve ter adivinhado. É Joseph Ratzinger.
Texto José Francisco Botelho
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