Rodado em 1914, filme sobre a
Guerra Civil dos EUA é polêmico ainda hoje. Longa-metragem é um marco da
história do cinema mundial e interpreta a criação da Ku Klux Klan como a
verdadeira vitória do conflito que matou mais de 600 mil americanos.
The bringing of the African to
America planted the first seed of desunion [A vinda dos africanos para a
América plantou a primeira semente de desunião]. A frase em letras brancas
sobre o trêmulo fundo preto abre como um título o filme O nascimento de uma
nação, dirigido por D.W. Griffith em 1914 e distribuído para as salas de cinema
dos Estados Unidos no ano seguinte.
Sucesso de público
Atraiu assustadores 1 milhão
de espectadores num tempo em que assistir a filmes era considerado luxo; e
marco na história do cinema mundial por suas inovações técnicas e narrativas, O
nascimento de uma nação foi, no entanto, alvo de polêmicas: tanto na época em
que foi lançado, quanto nas décadas seguintes. O motivo? A interpretação
racista sobre a Guerra de Secessão norte-americana (1861-1865), perceptível
desde a representação dos negros na telona (na verdade, atores brancos pintados
de preto) à conclusão do que seria de fato o nascimento dos EUA enquanto nação:
a formação da Ku Klux Klan.
A história
Posteriormente refeita e
adaptada para uma nova visão no filme E o vento levou (1939) - é basicamente a
seguinte: duas famílias tradicionais, uma do Norte e outra do Sul, são
tragicamente separadas pela guerra. O arco que dá dramaticidade à narrativa é o
clássico: um casal que se apaixona, mas não pode viver o romance por conta do
conflito. Tudo ao melhor estilo shakespeariano de Romeu e Julieta, salvo que,
no final, os apaixonados se casam.
Como é de se esperar, os
familiares do Norte (os Stoneman) apoiam a manutenção do Estado unido e veem os
negros como pessoas boas – mas sempre são enganados por eles. Elsie, a mocinha,
é inclusive perseguida e cobiçada por um negro tarado que ocupa uma vaga no
Congresso: ele é violento e tenta conseguir o corpo da jovem à força, já que
ela não retribui o seu amor.
No Sul, a família Cameron
nunca se deixou enganar pelos abolicionistas. São proprietários de uma fazenda
de algodão e sofrem na pele a dor da guerra, tendo sua propriedade destruída
pelo exército nortista (quase sempre representado por soldados negros,
vândalos). Os sulistas vendem seus pertences para custear as tropas que estão a
serviço de seus interesses e acabam numa casa pobre, lutando para sobreviver. O
filme, feito sob ponto de vista desta família, transmite bem a angústia e o
medo pelo qual seus semelhantes passaram durante o confronto que acabou com a
vitória do Norte e a abolição completa da escravidão no país.
Não é preciso muito tempo ou
atenção ao assistir ao primeiro longa-metragem de mais de uma hora de duração
já feito para perceber que se atribui aos negros a culpa por todos os problemas
dos Estados Unidos durante e após à guerra civil que matou cerca de 600 mil
pessoas. No filme (disponível na íntegra no Youtube), há dois tipos de negro: o
bom, o escravo dócil e obediente que nunca luta contra seus senhores, como a
empregada da casa da família Cameron, que inclusive ajuda seus patrões quando
estes estão sendo perseguidos por negros fardados do exército rival; ou o mau,
representado pelos negros que reivindicam a abolição, que desejam uma vida que
não lhes pertence, desrespeitando, assim, seus senhores. Os negros malvados são
grossos, animalescos, brutais; como é o caso da empregada da família Stoneman –
uma doméstica deslumbrada, que sonha em ser uma dama, mas cospe, rouba,
dissimula.
O nascimento da nação
Em um período em que já se via
um discurso antissegregacionista - já cinquenta anos após a abolição – um filme
que apontava a Ku Klux Klan como salvadora da nação não podia ser publicamente
bem aceito pela sociedade. Tal racismo, mesmo que impregnado no pensamento de
parte da população, não podia mais ser explícito. Após ter sido exibido na Casa
Branca ao presidente Wilson, o filme recebeu uma dura objeção: imediatamente, a
sede do governo publicou uma nota alegando que o presidente repudiava o teor do
longa e não sabia do que se tratava antes de assisti-lo. Fontes da época, no
entanto, diziam que Wilson assistiu à obra outras vezes, em sessões secretas.
Griffith recebeu tantas
críticas que, anos depois, investiu todo o seu dinheiro em um filme para se
redimir, chamado Intolerância, mas que, no final, foi um fracasso de público,
apesar de ser uma aula de narrativa cinematográfica. O cineasta nunca mais
conseguiu reaver o dinheiro que perdeu e muito menos sua reputação - se manteve
com pouca renda até o fim da vida.
Outras interpretações do filme
Para os estudiosos de história
do cinema, O Nascimento de uma Nação é o marco inicial do Cinema Moderno, não
só por ter sido o primeiro longa-metragem de três horas já feito, como também
por ter sido pioneiro em recursos de montagem; inovação de planos, construção
da narrativa, direção de atores em cenas grandiosas, recursos visuais e expectação
de público para a época. Foi também recorde de gastos com a produção: Griffith
investiu o equivalente a 2 milhões de dólares atuais e lucrou 500 mil dólares
de hoje a mais do que o investimento. A cifra para a época era grandiosa, dado
que os filmes feitos até então costumavam ser curtas-metragens, que pouco
conseguiam contar uma história com início meio e fim.
Com O Nascimento de uma Nação,
Griffith se consolidou no hall dos cineastas mais geniais de todos os tempos.
Até 2000, o artista nascido no interior do Kentucky permaneceu na lista dos
mais memoráveis diretores norte-americanos, feita pela Directors Guild of
America’s National Board. Devido à índole racista, foi retirado do pódio
recentemente pelo comitê, numa ação duramente criticada por cineastas e
estudiosos do mundo inteiro, como Peter Bogdanovich.
Reescrevendo o passado
Na época de O Nascimento de
uma nação, os norte-americanos tentavam reescrever sua história, principalmente
nas partes que diziam respeito à construção de um país unificado e qual era o
papel do negro (e também dos imigrantes) na incipiente grande potência do
século XX.
No que se refere à abolição da
escravidão, ela não era cogitada quando Abraham Lincoln anunciou a guerra
contra os estados separatistas do Sul, naquele abril de 1861. Apesar ser
coadjuvante naquele cenário em que a tragédia sangrenta ainda não era vislumbrada,
a abolição virou protagonista nos anos que seguiram o conflito. As causas da
guerra, nada abordadas pelo filme de Griffith, datam do início da República,
quando foi traçada uma disparidade entre colônias do Norte e do Sul, que
faiscavam num conflito iminente, mas que foram adiadas pela elaboração da
Constituição norte-americana, em 1787.
Com o Destino Manifesto e a
marcha para o Oeste, uma grande questão surgiu na potência emergente:
mão-de-obra escrava ou livre nas novas terras? Acendeu ali a chama da
discórdia, que, junto a outros fatores (como divergências com relação a taxas
de importação e também com a responsabilidade sobre o financiamento de
infraestrutura de transportes) moveu exércitos do Sul e do Norte numa luta
sangrenta.
O verdadeiro nascimento da
nação norte-americana se deu depois, no pós-guerra, na chamada Reconstrução.
Não porque o exército de salvação da Ku Klux Klan se ofereceu para salvar o
país e o povo se sentiu seguro protegido por ele, mas sim pelo trabalho mútuo
de reorganização da economia e reconstrução do que foi destruído, numa parceria
entre Norte, Sul e governo central. O apoio do Estado neste processo incentivou
o sentimento nacionalista e patriótico norte-americano – como vinha ocorrendo
em outros países do globo, conforme sugeria Eric Hobsbawm em Nações e
nacionalismos -, unindo o que se pode chamar de povo pelo sentimento de
pertencimento ao país e não apenas a seus respectivos estados.
Os negros, naquele contexto,
foram postos numa casa marginal e criava-se ali o modelo segregacionista,
apesar do governo começar a tecer uma rede de políticas públicas para amparar
os recém-libertos, diferente, por exemplo, do que ocorreu no Brasil. A situação
avançaria pelo século, terminando apenas na década de 1960, quando os movimentos
por igualdade racial estouraram nos Estados Unidos e causaram o fim das
diferenças legais entre negros e brancos.